domingo, 16 de outubro de 2016

Prisão domiciliar

Faltava uma última colherada. E a colher estava bem gasta, parecendo se quebrar em mil estilhaços. Ia jorrar muito sangue se isso acontecesse, por isso precisava ser tão cuidadosa quanto um felino a saborear a mais dura carcaça onde quer que esse animal vivesse. Ela não era bióloga. Tinha horror aos estudos e talvez lhe tivesse sido útil esse horror, dado que se equiparava ao horror que tinha por gente pobre.

“O que estou fazendo mesmo?”, se perguntou, mas se lembrou tão rápido a ponto de esquecer seu primeiro dilema. Mordeu a colher, tamanho o desejo sentido por aquele caviar fresco. A colher se rompeu em sua boca, rasgando sua língua e enrubescendo seus dentes acanhados. Ela gritou!

Correu pela cozinha a procura de sal, mas lembrou ter ordenado a Marizete para cortar o sal... há dois meses! Não podia sair de casa assim. Mas Marizete estava de folga. Resolveu ligar de seu celular Samsung e correu até a sala. Meu Deus! A bolsa estava pegando fogo!

Não, era só a televisão ligada no canal errado. Sua bolsa de verdade estava no sofá. Pegou o telefone em suas mãos, espumando sangue “como uma cadela raivosa menstruando pela boca”, pensava consigo, “Tenho que compartilhar no zapzap”, até uma torrente de sangue inundou a tela do seu smartphone. A piada teria que esperar.

Resolveu compartilhar mais um petista preso e ligou para Marizete a cobrar. Dona Cláudia dançou com a musiquinha que raramente ouvia, mas se assombrou ao ouvir gemidos quando completou. “Malicete, é vofê?”, inqueriu. “Sim.”, ouviu sem pensar: “Malicete, eu fortei...”. “Sim.” “Eu fortei...” “Sim, sim. Isso!!” e Dona Cláudia não se atreveu a contextualizar aquilo ali, mas desligou o telefone e resolveu checar os classificados.

Não. Primeiro, a boca. Desistiu de chamar por ajuda e saiu de casa.

Sua tornozeleira apitou, mas Dona Cláudia prosseguiu até a farmácia. Lá encontrou com seu agente de custódia. Ele lhe deu bom dia e foi embora. Tinha mais a fazer aquém de vigiar aquela socialite fanhosa.

“Fanhosa, eu?!”, ela me respondeu indignada antes de desmaiar detrás de uma prateleira. Quando despertou, já era tarde... Recolheram seu celular e mandaram ir pro quarto sem jantar.

Ela nada pôde responder. Estava com a língua costurada.

sábado, 15 de outubro de 2016

Deuses e mortais

Ela viu um conhecido. Alguém muito familiar. Resolveu cumprimenta-lo e bateu de cabeça com o sujeito. Zonza, zuniu e zanzou ali dentro confusa. Quem ele pensava que era para agir assim?! Eles bateram cabeça uma... duas... três vezes até que ela desistiu – seus olhos embaçavam com as pancadas - e resolveu se virar:
Um magnífico portal se abriu diante dela, passando por ele um ser colossal, titânico, talvez divino. Isso, divino. Diferente de todos os outros até então e deveras mais belo que o bruto com quem, segundos antes, brigara.
Passado o torpor, ela se escondeu tal qual verme insignificante como viera ao mundo e o observou se acomodar de braços cruzados bem no meio do ambiente. Ansiosa, andava de um lado ao outro sem saber como lidar com o ente celestial bem no meio da sua sala.

Resolveu ir em sua direção. Tocou-lhe as pernas, mas ele não a percebeu. Subiu até pela cintura até rastejar por sua camiseta embebida de suor. Ainda assim, ele se encontrava completamente absorto para contemplar a beleza desta mortal criatura. Finalmente tomou coragem e resolveu encará-lo olho no olho. Pra quê?

O gigante se acovardou e passou a dançar loucamente agitando as mãos, olhando para os lados, enquanto a mortal tentava, em vão, acompanhar os seus movimentos. Finalmente, desistiu dos olhos e resolveu lhe cochichar ao pé da orelha:

– Posso ser sua mensageira, senhor?

Subitamente o portal se abriu novamente e o deus fugiu para o novo horizonte que se revelava além daquele limiar.

– Como raios vou espalhar ESSA mensagem para outros?

A mortal resolveu seguir seu deus, mas foi esmagada pelo portal que, justo naquele momento, se encerrou.